domingo, 20 de julho de 2008

A formação do feudalismo

INTRODUÇÃO
A formação do feudalismo, na Europa Ocidental, envolveu uma série de elementos estruturais, de origem romana e germânica, associados aos fatores conjunturais, num longo período, que engloba a crise do Império Romano a partir do século III, a formação dos Reinos Bárbaros e a desagregação do Império Carolíngeo no século IX.
A CRISE ROMANA
A partir do século III a crise do império romano tornou-se intensa e manifestou-se principalmente nas cidades, através das lutas sociais, da retração do comércio e das invasões bárbaras. Esses elementos estimularam um processo de ruralização, envolvendo tanto as elites como a massa plebéia, determinando o desenvolvimento de uma nova estrutura sócio econômica, baseada nas Vilae e no colonato.As transformações da estrutura produtiva desenvolveram-se principalmente nos séculos IV e V e ocorreram também mesmo nas regiões onde se fixaram os povos bárbaros, que, de uma forma geral, tenderam a se organizar seguindo a nova tendência do Império, com uma economia rural, aprofundando o processo de fragmentação.Em meio a crise, as Vilae tenderam a se transformar no núcleo básico da economia. A grande propriedade rural passou a diversificar a produção de gêneros agrícolas, além da criação de animais e da produção artesanal, deixando de produzir para o mercado, atendendo suas próprias necessidades.Foi dentro deste contexto que desenvolveu-se o colonato, novo sistema de trabalho, que atendia aos interesses dos grandes proprietários rurais ao substituir o trabalho escravo, aos interesses do Estado, que preservava uma fonte de arrecadação tributária e mesmo aos interesses da plebe, que migrando para as áreas rurais, encontrava trabalho.
O COLONO
O colono é o trabalhador rural, colocado agora em uma nova situação. Nas regiões próximas à Roma a origem do colono é o antigo plebeu ou ainda o ex-escravo, enquanto nas áreas mais afastadas é normalmente o homem de origem bárbara, que, ao abandonar o nomadismo e a guerra é fixado à terraO colono é um homem livre por não ser escravo, porém está preso à terra.A grande propriedade passou a dividir-se em duas grandes partes, ambas trabalhadas pelo colono; uma utilizada exclusivamente pelo proprietário, a outra dividida entre os colonos. Cada colono tinha a posse de seu lote de terra, não podendo abandona-lo e nem ser expulso dele, devendo trabalhar na terra do senhor e entregar parte da produção de seu lote.Dessa maneira percebe-se que a estrutura fundiária desenvolve-se de uma maneira que pode ser considerada como embrionária da economia feudalÉ importante notar que durante todo o período de gestação do feudalismo ainda serão encontrados escravos na Europa, porém em pequena quantidade e com importância cada vez mais reduzida.
AS INVASÕES BÁRBARAS
Os povos "bárbaros", ao ocuparem parte das terras do Império Romano, contribuíram com o processo de ruralização e com a fragmentação do poder, no entanto assimilaram aspectos da organização sócio econômica romana, fazendo com que os membros da tribo se tornassem pequenos proprietários ou rendeiros e, com o passar do tempo, cada vez mais dependentes dos grandes proprietários rurais, antigos líderes tribais.O colapso do "Mundo Romano" possibilitou o desenvolvimento de diversos reinos de origem bárbara na Europa, destacando-se o Reino dos Francos, formado no final do século V, a partir da união de diversas tribos francas sob a autoridade de Clóvis, iniciador da Dinastia Merovíngea.A aliança das tribos, assim como a aliança de Clóvis com a Igreja Católica impulsionou o processo de conquistas territoriais, que estendeu-se até o século IX e foi responsável pela consolidação do "beneficium", que transformaria a elite militar em elite agrária.O "Beneficium" era uma instituição bárbara, a partir da qual o chefe tribal concedia certos benefícios a seus subordinados, em troca de serviços e principalmente de fidelidade. Em um período de crise generalizada, marcada pela retração do comércio, da economia monetária e pela ruralização, a terra tornou-se o bem mais valioso e passou a ser doada pelos reis a seus principais comandantes.
O IMPÉRIO CAROLÍNGEO
Durante o reinado de Carlos Magno (768 - 814), a autoridade real havia se fortalecido, freando momentaneamente as tendências descentralizadoras. Como explicar então a formação do feudalismo, se o poder real é fortalecido? Primeiro a centralização deve ser vista dentro do quadro de conquistas da época, comandadas pelo rei, reforçando sua autoridade, mas ao mesmo tempo, preservando o beneficium. Com o Estado centralizado, a cobrança das obrigações baseadas na fidelidade ainda são eficientes e esse função é destinada aos "Missi Dominici" ( enviados do rei). Segundo, a Igreja Católica já era uma importante instituição, que, ao apoiar as conquistas do rei, referenda sua autoridade e poder, ao mesmo tempo que interfere nas relações sociais, como demostra o "Juramento de Fidelidade" instituição de origem bárbara que passou a ser realizada sob "os olhos de Deus" legitimando-a como representativa de sua vontade.No entanto é importante perceber as contradições existentes nesse processo: a Igreja construiu sua própria autoridade e como grande proprietária rural tendeu, em vários momentos, a desvincular-se do poder central.
AS RELAÇÕES VASSÁLICAS
As relações de subordinação desenvolveram-se desde o século V, no entanto foi durante o reinado de Carlos Magno que tomaram sua forma mais desenvolvida. O incentivo aos laços de vassalagem num primeiro momento fortalecia o poder real, pois direta ou indiretamente estendia-se a toda a sociedade, no entanto, com o passar do tempo o resultado tornou-se oposto na medida em que as relações pessoais foram reforçadas, diminuindo portanto a importância do Estado.
Historianet

sábado, 19 de julho de 2008

500 anos que a América é América

Por Voltaire Schilling


Em uma edição cartográfica cuidadosamente ilustrada, um novo Mapa Mundi aparecido em 25 de abril de 1507 - desde então descrito como o Primeiro Novo Mapa do Mundo - a Europa finalmente tomou conhecimento da existência de um novo continente, outro mundo situado do lado de lá do oceano Atlântico.
O autor da proeza chamava-se Martin Waldseemüller, um geógrafo e humanista alemão que nascera em Freiburg im Breisgau, em 1470, e que estava em Saint-Dié des Vosges a serviço de René II, duque da Lorena, patrono da magnífica impressão. Ali, pela primeira vez, a palavra "América" apareceu grafada sobre o que hoje é a América do Sul.
Colombo e Vespúcio

Américo Vespúcio (1454 - 1522)
Coube a dois italianos, ao genovês Cristóvão Colombo e ao florentino Américo Vespúcio, um descobridor e o outro desbravador do Novo Mundo, deixarem em carta aos seus patrões o relato da paisagem fabulosa que haviam encontrado do outro lado do Mar Oceano, como então chamavam o Atlântico. Ambos singraram pelo ultramar por diversas vezes entre 1492 e 1507, mas a percepção deles do que haviam visto foi totalmente diferente.
Colombo, como é sabido, pensou ter encontrado as beiras mais ocidentais das Índias, ilhas que anunciavam que o maravilhoso mercado das especiarias estaria mais adiante, mais para além ainda, enquanto Vespúcio(*), que jamais navegou com Colombo, teve o entendimento de que se tratava de outro continente, um Mundus Novus, algo que jamais constara em algum mapa conhecido.
Não sem razão, a Carta que Vespúcio enviou ao seu patrão em Florença, o banqueiro Lorenzo di Pierfrancesco de Medici, dando conta do que vira, adquiriu dimensões bem mais sensacionais do que o relato de Colombo aos reis de Espanha. Entre outros motivos porque a capacidade narrativa do florentino deixou longe a do genovês.
No mesmo momento em que a Carta de Vespúcio, já famosa e circulando pela Europa, era traduzida para o francês, Martin Waldseemüller coordenava uma equipe de desenhistas e geógrafos do Gymnasium Vosagense para dar andamento na feitura de um novíssimo Mapa Mundi que contemplasse a sensacional descoberta.
(*) Batizado na Igreja de San Giovani em Florença,no dia 18 de março de 1454, Américo Vespúcio, de ilustre família do patriciado local, foi fortemente influenciado na sua formação tanto pelo geógrafo Paolo Del Pozzo Toscanelli, teórico que advogava a chegada ao oriente pela rota do ocidente, seguida depois por Colombo, como pelo filósofo Marsílio Ficino, diretor da academia Careggi.
Chegou à Sevilha um pouco antes da descoberta de Colombo, em 1490, como agente de casa bancária. Em 1508 colocou-se a serviço da Casa da Contratação de Sevilha como Piloto Maior de Castela , posição que cuidava das viagens transatlânticas, cidade em que veio a falecer em 22 de fevereiro de 1522. Críticos do testemunho de Vespúcio suspeitam que muito do que escreveu foi forjado a posteriori.

Superando Ptolomeu
Ptolomeu (85 - 165)
No começo do século XVI não havia, no mundo acadêmico ocidental, outra autoridade a quem recorrer em matéria de estudos cosmológicos ou cartográficos senão o velho sábio alexandrino Ptolomeu (85 - 165), morto a mil e quatrocentos anos passados. Era a ele que todos os estudiosos, fossem astrônomos ou geógrafos, recorriam, e nele sempre se deparavam com a existência de somente três continentes: Europa, África e Ásia.
Colombo e Vespúcio, todavia, com o testemunho trazido das suas viagens, provocaram uma revolução geográfica, exigindo a feitura de um novo desenho cartográfico do globo. Coube então a René II, duque da Lorena e Patrono das Artes, proporcionar os recursos para que Waldseemüller pudesse levar adiante um extenso planisfério que assinalasse as modificações necessárias.
A antiga "geographiae" de Ptolomeu viu-se do dia para noite totalmente superada pelas notícias trazidas pela Carta do florentino, sendo então enriquecida pela nova edição intitulada Universalis cosmographia secundum Ptolemaei traditionem et Americi Vespúcci aliorumque lustrationes (Cosmografia universal segundo a tradição de Ptolomeu e de Américo Vespúcio e outros navegantes).
O novo mapa

O mapa de Waldseemüller Além de registrar os feitos da Era das Grandes Descobertas (iniciadas em 1492), sua importância logo se manifestou pelos seguintes aspectos: foi a primeira vez que se editou um mapa separado do livro que o acompanhava, no caso o Cosmographiae Introducto, volume ao qual vinha anexado o relato das Quattuor Americi Navegationes (as Quatro Viagens de Américo).
Tratava-se do primeiro mapa extremamente bem detalhado em enormes proporções (2,3m. x 1,3m.) e por isso necessitou de doze blocos de madeira para concretizar sua impressão. Foi o primeiro a cobrir o mundo em 360° de longitude, o pioneiro a mostrar tanto a parte norte como a parte sul do continente batizado como "América", inspiração trazida pelas cartas de Vespúcio.
O desenho foi ainda o primeiro mapa a detalhar a costa da África por inteiro, como também a posicionar corretamente o oceano Pacífico, ainda alguns anos antes que ele fosse percorrido por Vasco Nuñez Balboa e bem antes de Fernão de Magalhães. Também foi inovador ao mostrar com precisão a posição do Japão (denominado como Zipangi).A sensação da obra foi tamanha que varias edições foram então distribuídas, dando início à moderna cartografia dos Mapas Mundi. Um destes originais foi vendido em 2003 pelo príncipe alemão Waldburg-Wolfegg, de Baden-Würtemberg, para a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, em Washington, pelo valor de US$ 10 milhões, ficando desde então exposto ao público no edifício Thomas Jefferson.
Bibliografia
Arcinegas, German - Amérigo y el Nuevo Mundo. México - Buenos Aires: Editorial Hermes, 1955.
Arcinegas, German - América, 500 años de un nombre - Vida y época de Amerigo Vespúcci. Bogotá: Villegas Editores, 3ª ed. 2002.
Brading, David A. – Orbe Indiano: de la monarquia católica a la republica criolla, 1492-1867. México: Fondo de Cultura Económica, 1991.
Vespuccio, Américo – El Nuevo Mundo. Buenos Aires: Editora Roberto Levillier, 1951.

Início da colonização do Brasil

Nesses 500 anos de descobrimento do Brasil, muito tem-se falado da expansão ultramarina portuguesa, da expedição de Pedro Álvares Cabral e de sua chegada ao Brasil. Inclusive mais recentemente, a divulgação de documentos sobre as viagens de Duarte Pacheco, colocam em questão o pioneirismo de Cabral no Brasil.Sem negar a importância do chamado descobrimento, é sempre bom lembrar-mos que a colonização somente se efetiva cerca de 30 anos depois de Cabral, com a chegada de Martim Afonso de Souza. Sua expedição pode ser considerada um divisor de águas em nossa história, determinando a passagem do período pré-colonial para o período colonial.Nossa hitoriografia convencionou dividir a história do Brasil em três períodos: colônia, império e república. Contudo nos 30 primeiros anos do século XVI não existiu colonização. Esta fase, chamada pré-colonial, foi marcada pelo extrativismo vegetal do pau-brasil, com mão-de-obra indígena baseada no escambo, pela criação de algumas feitorias e envio de algumas expedições exploradoras e guarda-costeiras.Porque durante três décadas o Brasil foi relegado a um plano secundário?A resposta é simples : "lucro".Nesse momento, Estado e burguesia portugueses estavam mais interessados na África e na Ásia, porque aí os lucros eram imediatos com o comércio das especiarias asiáticas e dos produtos africanos, como o ouro, o marfim além do escravo negro.Os lucros conseguidos com a extração do pau-brasil eram insignificantes se comparados com os afro-asiáticos.Porém, as coisas mudaram um pouco e no final da década de 1520, Portugal via uma dupla necessidade de iniciar a colonização no Brasil. Por um lado, o reino passava por sérios problemas financeiros com a perda do monopólio do comércio das especiarias asiáticas. Por outro lado, a crescente presença estrangeira, notadamente francesa, no nosso litoral, ameaçava a posse portuguesa no novo mundo. Nesse sentido, o governo português enviou ao Brasil em 1530, a primeira expedição colonizadora, sob comando de Martim Afonso de Sousa. Essa expedição visava povoar a terra, defende-la, organizar sua administração e sistematizar a exploração econômica; enfim, colonizá-la.Martim Afonso de Sousa, também destacou-se em nossa história ter trazido as primeiras mudas de cana-de-açúcar na região de são Vicente (SP) - produto que representará o primeiro grande momento da economia colonial - promovendo a instalação do primeiro engenho do Brasil (Engenho do Governador) e dando condições para fundação em 1532 de São Vicente, primeiro núcleo populacional do Brasil.Pode-se ainda avaliar a importância de sua expedição, sabendo que foram principalmente os seus resultados o que provavelmente levou o rei de Portugal D. Jõao III ao plano de subdividir o Brasil em donatarias, primeiro passo para sua colonização regular. Essas donatarias ou capitanias hereditárias representam o primeiro projeto político-administrativo para colonização do Brasil, reproduzindo, com algumas diferenças, o sistema já experimentado pelo governo português em suas ilhas no Atlântico africano.
Fonte Historianet.

A Carta de Pero Vaz de Caminha:

Senhor:Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que -- para o bem contar e falar -- o saiba pior que todos fazer.Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para aformosear nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu.Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo:A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã- Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da ilha de S. Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais!E assim seguimos nosso caminho, por este mar, de longo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, estando da dita Ilha obra de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra, os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam fura-buxos.Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome - o Monte Pascoal e à terra - a Terra da Vera Cruz.Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e ao sol posto, obra de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças -- ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimosem direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dezhoras pouco mais ou menos.Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si.E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens.Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barretevermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramalgrande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.Na noite seguinte, ventou tanto sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus, e especialmente a capitânia. E sexta pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouso, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertarmos.Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem.E, velejando nós pela costa, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles; e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de uma légua do recife, e ancoraram em onze braças.E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa.A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimentoduma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber.Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiçoe as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeramsinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata.Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados.Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora.Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora.Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo.Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera.Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; e ancoraram em cinco ou seis braças - ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura, que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho.Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além do rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e o levou até lá. Mas logo tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam; traziam cabaços de água, e tomavam alguns barris que nós levávamos: enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todos chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos; e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha, de maneira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho oupor qualquer coisa que homem lhes queria dar.Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais.Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; outros traziam três daqueles bicos, a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos deazulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, esuas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.Ali por então não houve mais fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser tamanha, que se não entendia nem ouvia ninguém.Acenamos-lhes que se fossem; assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos e eles mandaram o degredado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tomar nada, antes o mandaram com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu , à vista de nós, àquele que da primeira vez agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo.Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura; e certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos e eles foram-se.À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu -- ele com todos nós -- em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem de noite.Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se aprestassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar mui bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual foi dita pelo padre frei Henrique,em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho.Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção.Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. Ealguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que aí tinham -- as quais não são feitas como as que eu já vi; somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé.Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele.Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não.Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saía da água, parecia mais vermelha.Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra.Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos às naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram.Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto aí estávamos, foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quaisvinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira.E tanto que comemos, vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem.E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados.Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito melhor informação da terra dariam doishomens destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar.E que, portanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos.E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado.Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-se-ia bem como era o rio, e também para folgarmos.Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam; outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suassetas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam.Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam.Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos.A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio.Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas.Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele.Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim.Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta; e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergonha.Também andava aí outra mulher moça com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de quê) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum.Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que corre sempre chegado à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de almadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem ele a nósquantas coisas que lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia.Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco. O Capitão lha fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa,mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza.Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos.Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado.Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e elesfolgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras, e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima.E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cimae sai a água por muitos lugares.E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia.Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar.O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém.Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que nãopode mais ser.Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos nenhuma casa ou maneira delas.Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Douro e Minho.E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir.À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós; e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapucinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou, que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza.E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armar, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos.Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiros, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que elesandavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam.Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas.Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta, que parece uma fita preta, da largura de dois dedos.E o Capitão mandou aquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite.Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro.Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tardefizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles.Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse.E com isto vieram; e nós tornámo-nos às naus.À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa.Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer.Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou.Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não tem coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá.Era já a conversação deles conosco tanta, que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer.O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e aoutras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram.Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas-seixas, e pareceram-me bastante maioresque as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas; eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves!Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha.Eu creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio -- o Capitão a Ela há de enviar.À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que lá foi, seriam obra de trezentos.Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se, já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos.Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e curar. Comeram toda a vianda que lhes deram; e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite.E assim não houve mais este dia que para escrever seja.À quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz.Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem.Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pequena de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta paracima. E vinha tão contente com ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais aí.Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta.Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho; outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade.Andavam todos tão dispostos, tão bem-feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis.Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles.Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água.Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos.Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam, acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la.Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença.E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bonsrostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa.Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim.Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja ao viver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus.Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso,em tal maneira que, se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber: o Capitão-mor, dois; e Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem.Um dos que o Capitão trouxe era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar.Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixodo rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão.Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta; e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fomo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem cento e cinqüenta ou mais.Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós.E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado; e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção.Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros.Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissessealguma coisa de bem; e nós assim o tomamos.Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu junto com altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, o que nos aumentou a devoção.Esses, que à pregação sempre estiveram, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquele, que digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho comcrucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse a cada um a sua ao pescoço. Pelo que o padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta.Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos às naus a comer, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele. Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras.E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, quetodos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais, ambos, hoje também comungaram.Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha.Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação.Acabado isto, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer.Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida.Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa.Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa.Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora osachávamos como os de lá.Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar.E que aí não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria. Quando mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé.E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, que o desejo que tinha, de Vos tudo dizer, mo fez assim pôr pelo miúdo.E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que dáEla receberei em muita mercê.Beijo as mãos de Vossa Alteza.Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha
As Guerras Intercoloniais
No decorrer da Época Modema, a expansão marítima, comercial e colonial da Inglaterra fizera-se sobretudo às custas da Espanha e da Holanda, vencidas pelos ingleses, que se aproveitaram para tomar colônias das potências derrotadas
No decorrer da Época Modema, a expansão marítima, comercial e colonial da Inglaterra fizera-se sobretudo às custas da Espanha e da Holanda, vencidas pelos ingleses, que se aproveitaram para tomar colônias das potências derrotadas e, com isso, ampliar o Império inglês. As crises intemas da Inglaterra durante a Revolução Puritana (1642-1649) e a Restauração dos Stuart (1660-1688), no entanto, facilitaram a hegemonia da França na segunda metade do século XVII. Após a Revolução Gloriosa (1688-1689), qúe implantou o Parlamentarismo na Inglaterra, as transfornlações econômicas foram aceleradas, preparando a Revolução Industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII. Em pleno processo de desenvolvimento capitalista, a burguesia inglesa via na França, onde o Antigo Regime entrava em crise, um obstáculo a sua maior expansão comelcial, colonial e marítima.O antagonismo franco-inglês, dominante nas relações intemacionais no século XVIII, refletiu-se na América, onde a colonização inglesa na América do Norte se fez paralelamente à colonização francesa em terras do Canadá e da Luisiana.
Territórios ingleses e franceses na América do NorteA medida que a colonização inglesa avançava para o interior, via sua expansão dificultada a oeste e ao norte pelas áreas de colonização francesa na América do Norte. Entre os próprios colonos ingleses e franceses dedicados ao comércio de peles raras, as hostilidades foram uma constante, mesmo quando não havia guerra na Europa entre Inglaterra e França."Por outro lado, a confederação dos iroqueses, cuja esfera de influência compreendia a parte superior do Estado de Nova Iorque, a maior parte da Pensilvânia e o velho Noroeste, permaneceu fiel a sua aliança com os ingleses (...) que podiam provê-los de cobertas e de bebidas mais baratas que as dos franceses; e os iroqueses não só continuavam impermeáveis aos esforços dos missionários franceses, mas em certas ocasiões irrompiam pelo território das nações índias da Bacia do São Lourenço, aliadas dos franceses."Muitos colonos ingleses viam imensas riquezas nas terras banhadas pelas bacias hidrogràficas do Ohio, Missúri e Mississipi serem usufiødas pelos franco-arnericanos que dominavam aquelas regiões de grande importância econômica.Essas razões explicam as cinco guerras intercoloniais que correspondem a guerras travadas na Europa e em outras regiões entre a Inglaterra e a França, que teve a Espanha como aliada a partir do início do século XVIII, quando um Bourbon passou a reinar em Madri.O primeiro desses conflitos foi a Guerra da Liga de Augsburgo, conhecida na América como Guerra do Rei William (1688-1697), que implicou incursões dos colonos franco-americanos aos territórios da Nova Inglaterra, onde a devastação ocorrida provocou represálias dos anglo-americanos. Port Royal foi é conquistada, mas o Tratado de Ryswick estabeleceu a devolução daquela cidade e não trouxe nenhuma alteração para as fronteiras coloniais.De 1701 até 1713, ocorreu a Guerra da Sucessão de Espanha, na América chamada de Guerra da Rainha Ana e envolvendo operações militares na Carolina do Sul, cujos habitantes tiveram de lutar contra os franceses da Luisiana e seus aliados espanhóis da Flórida. Nesta área meridional, a luta deccrreu também das ambições dos colonos da Carolina do Sul em dominar a Bacia do Mississipi onde abundavam as peles de búfalo e de gamo, de amplo consumo no mercado europeu.Na Nova Inglaterra, onde os colonos de Massachusetts chegaram a solicitar ajuda da metrópole para conquislaro Canadá, os anglo-americanos, mais uma vez, se apoderaram de Port Royal, rebatizada com o nome de Anápolis. Com o Tratado de Utrecht (1713) a França cedeu à Inglaterra a Acádia, desde então conhecida como Nova Escócia, a Ilha de Terra Nova, cujos bancos pesqueiros atraíam colonos da Nova Inglaterra para a pesca do bacalhau, além de outras concessões.Em 1739 rebentou nova guerra entre a Inglaterra e a Espanha, na América denominada Guerra da Orelha de Jenkins, comerciante inglês que teve sua orelha decepada por piratas espanhóis. Durante as hostilidades a Geórgia foi atacada, sem sucesso, por frota espanhola, e numerosos colonos anglo-americanos pereceram em fracassada incursão inglesa a Cartagena, no Vice-Reino de Nova Granada.De 1745 até 1748 houve a Guerra de Sucessão Austríaca, conhecida na América como Guerra do Rei George. Novamente sucederam-se combates nas áreas setentrionais das Treze Colônias, tendo uma expediçào partido de Boston (Massachusetts) e se apoderado de Lcuisbourg na Ilha do Cabc Bretão, cujo ccntrole favoreceria a ação de barcos pesqueiros na foz do Rio São Lourenço e Terra Nova. A assinatura do Tratado de Aix-la-Chapelle estabeleceu a restituição de Louisbourg à França, o que não agradou aos anglo-americanos.Esse tratado não foi senão uma trégua entre anglo-americanos e franco-americanos, cujos antagonismos haviam atingido seu ponto culminante. Nas Treze Colônias organizaram-se diversas empresas - como a Companhia de Ohio, a Companhia Greebier e a Companhia Loyal - que especulavam sobre as terras do Oeste, onde os franceses haviam estabelecido recentemente uma série de fortes na Bacia do Ohio.Ora, acontece que essa região era de alto valor para o comércio de peles com os índios. Autoridades coloniais enviaram o Coronel George Washington, à frente de milicianos, ao Vale do Ohio, onde, sem declaração de guerra, atacoú os franceses, mas foi vencido (1754).Começava então a mais longa das guerras intercoloniais: a Guerra Franco-India. Este conflito antecedeu em dois anos a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), em que novamente se defrontaram França e Inglaterra, com resultados decisivos para a posterior evolução da História Colonial. Ao término das hostilidades, a França perdeu suas colônias na América: o Canadá e ilhas antilhanas. A Guerra Franco-India, "ao remover o inimigo francês, fez com que os colonos se sentissem menos dependentes do poder militar da Inglaterra. Ao elevar a níveis até então sem precedentes a dívida nacional da Inglaterra (...) ajudou a provocar uma política de lançamento de impostos e de comércio cada vez mais onerosa para as colônias, de parte da Grã-Bretanha, exatamente quando essas colônias haviam-se tomado mais numerosas, mais altamente comercializadas e mais independentes, no sentido militar, econômico e psicológico, do que jamais haviam sido em relação à Inglaterra.
Texto retirado do Livro “História das Sociedades Americanas” Aquino, Jesus e OscarEditora Ao Livro Técnico
Carta Testamento de Vargas
O famoso documento deixado pelo presidente Getúlio Vargas, que reforçou a comoção causada pelo suicídio.
Carta TestamentoGetúlio Vargas
Mais uma vez as forças e os interesses contra o povo coordenaram-se e novamente se desencadeiam sobre mim. Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa.Precisam sufocar a minha voz e impedir a minha ação, para que eu não continue a defender, como sempre defendi, o povo e principalmente os humildes. Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. Contra a justiça da revisão do salário mínimo se desencadearam os ódios. Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobrás e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma. A Eletrobrás foi obstaculada até o desespero. Não querem que o trabalhador seja livre.Não querem que o povo seja independente. Assumi o Governo dentro da espiral inflacionária que destruía os valores do trabalho. Os lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-se o nosso principal produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a ceder.Tenho lutado mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, para defender o povo, que agora se queda desamparado. Nada mais vos posso dar, a não ser meu sangue. Se as aves de rapina querem o sangue de alguém, querem continuar sugando o povo brasileiro, eu ofereço em holocausto a minha vida.Escolho este meio de estar sempre convosco. Quando vos humilharem, sentireis minha alma sofrendo ao vosso lado. Quando a fome bater à vossa porta, sentireis em vosso peito a energia para a luta por vós e vossos filhos. Quando vos vilipendiarem, sentireis no pensamento a força para a reação. Meu sacrifício vos manterá unidos e meu nome será a vossa bandeira de luta. Cada gota de meu sangue será uma chama imortal na vossa consciência e manterá a vibração sagrada para a resistência. Ao ódio respondo com operdão.E aos que pensam que me derrotaram respondo com a minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém. Meu sacrifício ficará para sempre em sua alma e meu sangue será o preço do seu resgate. Lutei contra a espoliação do Brasil. Lutei contra a espoliação do povo. Tenho lutado de peito aberto. O ódio, as infâmias, a calúnia não abateram meu ânimo. Eu vos dei a minha vida. Agora vos ofereço a minha morte.Nada receio. Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
(Rio de Janeiro, 23/08/54 - Getúlio Vargas)

Descobrimento do Brasil.

Ocorre na tarde de 22 de abril de 1500, quando a esquadra de dez naus e três caravelas, comandada pelo navegador português Pedro Álvares Cabral, atinge o litoral sul da Bahia, 44 dias depois de ter saído de Portugal. O desembarque acontece apenas no dia seguinte e, em 26 de abril, é celebrada a primeira missa no Brasil. No dia 1º de maio, com a celebração da segunda missa diante de uma grande cruz de madeira marcada com o brasão real, Cabral oficializa a posse da nova terra e, no dia 2, segue viagem para as Índias.
Casualidade – Não há, até agora, total conhecimento das circunstâncias do descobrimento do Brasil pelos portugueses em 1500. Está descartada, porém, a hipótese da casualidade, segundo a qual a frota de Cabral teria se afastado de sua rota e, involuntariamente, encontrado a costa brasileira. Desde o início do século XV, Portugal envia expedições para o Atlântico Sul e seus navegadores conheciam bem os sentidos e direções das correntes marítimas entre os continentes africano e americano. Sabiam da existência da corrente descendente (Canárias), que permite a navegação costeira pelo continente africano até o Golfo da Guiné, e da corrente ascendente (Benguela), que inverte o sentido das embarcações. Para atingirem o sul da África, navegadores portugueses afastavam-se da costa, evitando ventos e correntes ascendentes, e corrigiam a rota empurrados pela corrente descendente chamada Corrente do Brasil, que passa pelo Nordeste brasileiro e atinge o sul do continente africano.
Intencionalidade – Permanecem dúvidas quanto aos antecedentes da descoberta e aos verdadeiros objetivos da expedição de Cabral. Mas Portugal sabia da existência de terras a ocidente desde 1492, quando Cristóvão Colombo chega à América, e trata de garantir parte das terras através do Tratado de Tordesilhas, de 1494. Tem informações das expedições espanholas posteriores, algumas das quais teriam costeado o atual Nordeste brasileiro. E, imediatamente após o retorno de Vasco da Gama das Índias, em 1499, manda em segredo o cosmógrafo e navegante Duarte Pacheco Pereira refazer a sua rota e explorar a “quarta parte”, o quadrante oeste do Atlântico Sul. O mesmo Duarte Pacheco Pereira toma parte na expedição de Cabral em 1500, cuja finalidade provável é, além de dar prosseguimento às operações comerciais nas Índias, confirmar as explorações e tomar posse pública e oficialmente das novas terras. Portugal procura despistar possíveis concorrentes e esconder o conhecimento anterior da terra e a intenção de posse, evitando hastear o tradicional brasão real de pedra nas caravelas que compõem a frota de Cabral.
O Descobrimento do Brasil é um momento importante do processo de expansão marítima e comercial portuguesa nos séculos XV e XVI. Buscando alargar seus limites de atuação política e comercial, Portugal volta-se para o Atlântico, explorando inicialmente ilhas próximas e a costa africana. Com o apoio da burguesia mercantil e da nobreza cruzadista, o Estado desenvolve uma poderosa estrutura de navegação – concretizada na Escola de Sagres do Infante Dom Henrique – para trazer da África ouro, marfim e escravos e, das Índias, o cravo, a canela e a pimenta, as famosas e rendosas especiarias. A disputa dos reinos europeus pelas terras do continente americano, inserida na expansão do capitalismo comercial, começa com Portugal e Espanha na vanguarda, e impulsiona o descobrimento e a colonização do Novo Mundo.


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Crise que levou Vargas ao suicídio.

Há 50 anos, a morte do major Rubens Vaz iniciaria a mais dramática das crises republicanas brasileiras. Os que fomos testemunhas do cerco contra o Presidente não podemos acatar a versão dos vencedores. Na História, todo epílogo é um prefácio. Há exatamente 50 anos, a morte do major Rubens Vaz, da FAB (Força Aérea Brasileira), iniciaria a mais dramática das crises republicanas brasileiras. Por mais confissões tenham sido feitas, mais memórias escritas, mais documentos exibidos, permanece, entre os que foram testemunhas daquelas três semanas, menos dois dias, muita coisa a ser aclarada, como ainda há que se aclarar a morte de Kennedy. Este colunista, já jornalista naquele tempo, acompanhou, dia a dia, até o embarque do corpo de Vargas para o Sul, os fatos. Primeiro, de Belo Horizonte, onde trabalhava; depois, da manhã do dia 24 ao fim da manhã do dia seguinte, no Rio de Janeiro. Os que vieram depois podem aceitar a versão dos vencedores daquelas horas, mas os que fomos testemunhas do cerco contra o Presidente não podemos acatá-la. Ao candidatar-se, Vargas ouvira o aviso da fatalidade. Em entrevista à Folha da Noite, em plena campanha eleitoral (julho de 1950), disse o estadista: “Conheço meu povo e tenho confiança nele. Tenho plena certeza de que serei eleito, mas sei também que, pela segunda vez, não chegarei ao fim do meu governo. Terei de lutar. Até onde resistirei-- Se não me matarem, até que ponto meus nervos poderão agüentar-- Uma coisa lhes digo: não poderei tolerar humilhações”. Mais adiante, na mesma entrevista, esclarece: “Quero, ao morrer, deixar um nome digno e respeitado. Não me interessa levar para o túmulo uma renegada memória. Procurarei, por isso mesmo, desmanchar alguns erros de minha administração e empenhar-me-ei, a fundo, a fazer um governo eminentemente nacionalista. O Brasil ainda não conquistou a sua independência econômica e, nesse sentido, farei tudo para consegui-la. Cuidarei de valorizar o café, de resolver o problema da eletricidade e, sobretudo, de atacar a exploração das forças internacionais. Elas poderão, ainda, arrancar-nos alguma coisa, mas com muita dificuldade. Por isso mesmo, serei combatido sem tréguas. Eles, os grupos internacionais, não me atacarão de frente, porque não se arriscam a ferir os sentimentos de honra e civismo de nosso povo. Usarão outra tática, mais eficaz. Unir-se-ão com os descontentes daqui de dentro, os eternos inimigos do povo humilde, os que não desejam a valorização dos assalariados, nem as leis trabalhistas, menos ainda a legislação sobre os lucros extraordinários. Subvencionarão brasileiros inescrupulosos, seduzirão ingênuos inocentes. E, em nome de um falso idealismo e de uma falsa moralização, dizendo atacar sórdido ambiente corrupto que eles mesmos, de longa data, vêm criando, procurarão, atingindo minha pessoa e o meu governo, evitar a libertação nacional. Terei de lutar, se não me matarem”. A República do Galeão O major Vaz, ao trocar tiros com os pistoleiros, que, segundo vários depoimentos, queriam apenas assustar Lacerda – e ser atingido fatalmente –, não atuou como militar. Agiu como um correligionário político e amigo íntimo do jornalista da oposição. Apesar disso, os comandantes da Aeronáutica, com o apoio de altos oficiais do Exército e da Marinha, decidiram instaurar um “inquérito policial-militar” na Base Aérea do Galeão, que, em razão disso, passou a ser chamada de República do Galeão. Era a violação descarada da Constituição e dos regulamentos militares, que só prevêem inquéritos policiais-militares quando os oficiais e soldados estejam a serviço. Rubem Vaz não morrera como soldado, mas, sim, fora de seu horário de serviço e como guarda-costas afetivo de um político da Oposição. O crime deveria ser apurado pela polícia, que iniciou, no mesmo dia, o inquérito necessário. Mas contra Vargas não se haviam levantado ilegalmente somente os companheiros do morto. Uma vasta conspiração tomou conta do país, alimentada por quase todos os jornais, com a exceção singular da Última Hora. Vargas estava correto em sua premonição de quatro anos antes. Aos interesses estrangeiros se uniam os quislings nacionais, entre eles, Carlos Lacerda, festejado pelas elites pró-americanas e por setores enganados da classe média. O episódio mostra como a insensatez e o ódio são contagiosos. Intelectuais, que se tornariam sensatos nos anos seguintes, uniram-se no uivar da matilha contra o Presidente, como foi o caso de Alceu do Amoroso Lima. O grande pensador católico chegou a escrever um dos mais infames libelos contra o Presidente, quando o seu corpo ainda estava insepulto, sob o título de Sangue e Lama, no rodapé do Diário de Notícias, um dos jornais alinhados à antiga União Democrática Nacional – o partido das oligarquias reacionárias. Nos Estados, os governos se reuniam em favor da nova ordem pró-americana e antinacionalista. Fora alguns políticos honrados, não se lamentava o trágico desfecho da crise, mas se saudava o grupo recém-chegado ao poder, formado pela minoria parlamentar e pelas personalidades ligadas a Lacerda. Só Juscelino, com a força de Minas, teve outra atitude. Em plena crise, Vargas visitara o Estado, a fim de inaugurar uma indústria siderúrgica, e passara a noite de 12 para 13 de agosto como hóspede do governador de Minas, em sua residência oficial. Naquela noite, eu soube depois pelo próprio Juscelino, Vargas dormira mal. Ouvindo ruídos na biblioteca, o governador de Minas encontrou Getúlio lendo A Imitação de Cristo, do monge Thomas Kempis, um manual de consolação religiosa. O presidente Vargas que assumiu o cargo em 31 de janeiro de 1951 era o mesmo que governara de 1930 a 1945, e era outro. Era o mesmo em seu nacionalismo e no projeto de desenvolvimento nacional. Mas era outro, porque, eleito diretamente pelo povo, e não chegando ao poder pelas armas, tinha consciência de que teria que obedecer estritamente os fundamentos constitucionais, e assim o fez. Mas os interesses norte-americanos haviam se tornado ainda mais vorazes após a guerra. Dutra abrira o mercado nacional, ao assumir o governo em 1946, de uma forma que só seria suplantada por Fernando Collor e Fernando Henrique, meio século depois. O problema fundamental era o do petróleo, como continua sendo, com a agressão brutal ao Iraque. Os norte-americanos não admitiam que as jazidas brasileiras não viessem a ser exploradas por suas empresas, e apostaram todas as fichas em Carlos Lacerda, na UDN e em seus admiradores nos meios militares e políticos. Para os adversários de Vargas tudo era válido, até mesmo mistificar os conceitos e tentar opor “democracia” a nacionalismo. Democracia, para essas elites, continua ser um meio de ganhar dinheiro à custa do Estado e de manter-se no poder, mesmo como sócios menores dos estrangeiros. O que Vargas previra, em julho de 1950, ocorreu nos últimos meses de seu governo, sobretudo depois de haver sancionado a Lei 2004, que instituiu o monopólio estatal da exploração, refino e distribuição do petróleo brasileiro – que só viria a ser quebrado por iniciativa do Sr. Fernando Henrique Cardoso. E sua carta-testamento (claramente identificada, na denúncia e no estilo, com o que dissera à Folha da Noite) foi o epílogo do imenso drama político e pessoal. Mas, na História, todo epílogo é um prefácio.
Mauro Santayana, jornalista, é colaborador do Jornal da Tarde e do Correio Braziliense. Foi secretário de redação do Última Hora (1959), correspondente do Jornal do Brasil na Tchecoslováquia (1968 a 1970) e na Alemanha (1970 a 1973) e diretor da sucursal da Folha de S. Paulo em Minas Gerais (1978 a 1982). Publicou, entre outros, “Mar Negro” (2002 Texto de Agencia Carta Maior
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